Celtas e outros seres que bebem do Grande Rio.



Ontem dei por mim a chegar a casa, olhar para o céu e ver as estrelas... Aquelas mesmo que este clima britânico não nos deixa ver... que não nos deixa orientar, que nos limita os limites. Sim, se não as vemos, como podemos ansiar por elas?!

Todo este cinzentismo molhado, esta falta de luz, de firmamento, encurta-nos os limites. Atrofiamos agarrados a tudo que seja um um pedaço de calor, de conforto... E acomodamo-nos. Ficamos perigosa e demasiadamente cinzentos. Neutros, no nosso cantinho.

Mas ontem elas estavam lá... Para lembrar-nos que somos pequeninos, que por mais que nos julguemos poderosos, elas vão ver-nos a sucumbir, testemunhas silenciosas da nossa tragédia. Elas sabem o segredo da vida, são parte dele. Viram a mais pequenina enzima a adaptar-se à mudança... a mudar com ela, a ser a mudança em si.

Os que sobrevivem não são os mais fortes, são os que melhor se adaptam às circunstâncias. É este o principio da evolução de Darwin.E as circunstâncias do momento são de chuva, sangue, suor e lágrimas. Os tempos não estão fáceis. No entanto até nestas condicionantes encontramos um elemento comum... aquele fundamental à vida. Esse mesmo, a água.




A água envolve, dissolve, destrói, hidrata, afoga, evapora, lubrifica. Adapta-se a todo e qualquer momento. Muda de estado para continuar a existir. Depende disso. E tudo o resto.

Existem pessoas assim. Com uma fonte enorme dentro, que brotam a sua alma, que a retiram da lama que somos, evaporam o melhor de si, e saciam a sede de outros. Ininterruptamente, sempre a jorrar. Só temos que saber identificar em que estado é libertada. E ao mudarmos nossos filtros, mudamo-nos. Misturamo-nos na sua água. Alimentamos o caudal, engrossamos um todo que irá agora transformar quem encontrar-mos no caminho. Nem que tenhamos que evaporar, ficará sempre o residuo da nossa passagem, e levaremos connosco pedaços do que ficou para trás. Até o gelo é apenas uma parcela de tempo liquefeito, um ponto na linha, imóvel... mas por pouco. Porque nem o tempo é tão instávelmente constante como a água. 
O tempo não tem ciclos.
Nós, os macacos que caminham, na nossa tentativa de sermos deuses, desde sempre que o tentamos controlar, prender... E desde sempre isso falha. Diáriamente, e em cada segundo. Ele foge entre areias, sombras, ponteiros, calendários e outras gaiolas. A água regressa. Sempre. E ou nos adicionamos à corrente, ou seremos arrastados. É o nosso elemento natural, o berço primário, o útero inicial. Somos água. Mas nem todos somos fonte.

Quando 2 cursos de água se cruzam nada fica igual. Mesmo que se separem, os caudais, os seus caminhos, nunca mais serão os traçados inicialmente. Um deles ficará com água alheia. Ou então embaraçam e abraçam-se numa mistura plena. Criam um caudal próprio, um caminho comum, que se vai alimentado de toda a aáua que vem de suas origens.

É, os rios são rios apenas é só quando se juntam com outro semelhante. Até lá, não passam de meros ribeiros. Quando muito afluentes de um rio maior. Mas não são rios, não têm destino comum, não correm para o mesmo mar.

Este tema é intenso. Muito intenso. Perfeito. Na leveza do cantar da água nas pedras, naquela força brutal que não precisa ser demonstrada... Sente-se. No interior, nas águas profundas do violoncelo, nessa corrente-guia que leva o que as margens ofereceram em troca do que receberam. Colhe-se a água da chuva,sementes, os nutrientes que irão alimentar quem se atravessa na corrente ou banha em suas margens. O rio é a eternidade, o ciclo da vida.

Yruma é um daqueles rios cheios de caudal, que transbordam e fertilizam os terrenos, que são fundamentais para a renovação das culturas, e sobretudo, para manter o vazio da aridez longe da margem. Isto não é musica, é agua que nos enche o corpo, enriquece até transbordarmos. Simplesmente, lindo. Foi composto e escrito por ele mesmo, dedicado à futura esposa, também ela um rio de beleza asiática(foi miss Coreia do Sul), naquela beleza frágil, de traços finos, longos, suaves, com o sorriso rasgado até onde os olhos chegam.

Isto não é apenas música no sentido estrito da pauta e sonoridade... Isto é um hino a um ponto de confluencia entre 2 rios, águas que se encontram sem colidirem... apenas misturam-se. É água que canta e encanta.

A letra (sim, a letra original, não aquela americanização do Twilight)é perfeita para a sonoridade. Mas raramente ele a canta, diz que não consegue ser perfeito, que não quer estragar... Mas quando o faz, nota-se que ele não canta... Vive o tema, é um dos rios.
 Andam por aí várias versões. Aqui no sótão não gostamos lá muito das versões cantadas em inglês. Aquilo é plastico, é acrescentado. Como se tivesses uma casa e depois de feita acrescentas algo no exterior que desvirtua tudo. mesmo que uses o melhor dos materiais. Não combina, não pertence. Adiciona, mas não soma. Não é água daquele rio.



Este cover é muito bom. Não tem a pureza, a técnica, a beleza suave que nem precisa forçar para entrar, não é a água que conquista suavemente... Até porque quando se expressam sentimentos através daquilo que fazemos melhor(Yruma, não é apenas bom, é excelente), ninguém nos pode clonar. Copia-se, imita-se a técnica, mas não foram os criadores, não sentiram a água a brotar das entranhas... Não fica igual.

Mas tem a força do violoncelo, do caudal interno do rio. A água que borbulha à superficie (o piano passa para segundo plano) dá lugar aquela corrente que vemos forte, lá no meio do rio, que leva tudo, sem ondas, mas poderosa e imparavel. Violoncelo puro, grave, interno. É a alma do rio, a memória comum que sobrevive desde a nascente e que chegará intacta. Sente-se o poder do todo que é o rio... a energia acumulada, incrementada desde a nascente, que cresce a cada afluente que encontra... é a vida na água em toda a sua calma superficial. É o rio que pára momentaneamente na barragem, que acumula lentamente energia...  invisivel... Mas nem as barragens conseguem contê-la eternamente. tal como a vida, descobre sempre caminhos, nem que os tenha que forçar... nem que tenha que apelar ao violoncelo.

A vida, tal como a água, tem que continuar. O leito seco é apenas um momento, apenas uma parte de um todo, o lugar por onde a água passou.

E depois temos isto.



Corpo esguio, frágil, rosto e cabeca de elfo. Esta criatura não saiu das florestas mágicas, mas quase.

Americana, com sangue celta ancestral a correr nas veias, daquele irlandês forte, orgulhoso, de antes quebrar que torcer... simplesmente parece ter caido dum filme fantástico qualquer. Daqueles que nos fazem regressar a inocência infantil, onde não éramos limitados pela racionalidade ou pelo óbvio. Onde éramos magicamente felizes, sem efeitos especiais para além do tamanho do nosso olhar, boquiabertos, a devorar cada cena, cada movimento, cada pedaço da história.

Não. Esta pikena não pertence aqui. Talento puro, multi-facetada, daquelas pessoas que basta escolher uma área que atinge a excelência na tarefa. Gente que arrasta tudo e todos com sua personalidade, com sua força vital que vai para além das fronteiras do frágil corpo.

Lindsey é um pedaço de magia, um lapso temporal que nos brindou com um ser do animismo das florestas celtas, com a magia dos druidas, a sensualidade das elfos, com os encantamentos femininos  sem adereços plasticos, pinturas ou silicones. Apenas e só, mulher.

A harpa traz o toque divino, o sabor ao clássico, aos tempos em que se respeitava a Natureza e os seus Deuses. O tempo da comunhão com o que nos rodeia. Os celtas eram bons nisso. Povo bárbaro, mas fortemente ligado a floresta e ao grupo, ao clã.

Lindsey traz o aroma desses tempos. A graciosidade dos seres que nos rodeiam e nem sempre os vemos. Traz a nostalgia da inocência perdida, em que tudo era dificil, mas simples. Aceitava-se e aceitavamo-nos como apenas um pedaço infimo do Grande Todo. E interagiamos com respeito.

Lindsey lembra-nos o que estamos a perder. A magia, o acreditar para além dos 5 sentidos. E quando se perde a magia, quando se deixa de acreditar... morremos. não como corpo, mas como seres sociais, que convivem, partilham sentimentos, entreajudam-se. E respeitam o que os rodeia.


Certas pessoas são autenticos rios. Estão la, a correr. Não sabemos ver com os olhos bem fechados. Temos medo de beber de suas águas... De nos deixarmos ir na corrente.

Os grandes rios não deixam ninguem indiferente. Yruma é um grande rio. É com naturalidade que tentamos imitar os melhores. Poucos o conseguem, mas pelo menos tentam nadar nele.

É, ontem o céu estava estrelado. Mas o grande rio do céu afogou-me as estrelas.

Não faz mal, elas regressarão.

Vou aproveitar para beber um copo de água. Do Grande Rio.






Comentários

  1. Que eu tenha hoje, e a cada dia
    A força dos céus
    A luz do sol
    O brilho da lua
    O resplendor do fogo
    A agilidade do vento
    A profundidade do mar
    A estabilidade da terra
    E a firmeza da rocha.
    (Nos faz velejar na imensa corrente da vida)
    Amei...
    oração celta

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