Piano - As Longas Noites do Amanhã



-"Um piano".
Era mesmo assim, ela sentia-se um piano nas suas mãos.

Por umas artes mágicas que ela desconhecia mas sabia que ele possuía, cada vez que sentia o matraquear dos dedos deslizando pelas suas nuas costas... desaparecia tudo.
Apenas sabia que fechava os olhos, inspirava lenta e profundamente... e era pauta e teclas nas mãos do artista.


-"Oh que artista!" - libertou o pensamento. Sim... ele sabia fazê-la vibrar, arquear, gemer no tom certo e afinado. Como fosse uma daquelas composições clássicas, começando piano... um toque aqui, outro ali.... ritmo em crescendo, com o chinfrim dos metais da cama, orquestra de molas pressionadas, tambores contra a parede, coro vocal grave, agudo, gutural... até à apoteose final, ao êxtase colectivo, com a respectiva chuva final de aplausos sedentos de um encore. Uma e outra vez.

Deu por si imaginando-os em cima de um piano... com as teclas frenética e desordenadamente soando, na urgência do momento... na beleza do improviso, no saborear do compasso único, diferente de tudo o que já tinha sentido.

É... aquele homem possuía-a. Por dentro e por fora. Não imaginava a sua vida sem ele. Não conseguia sequer fazer um esforço nesse sentido. Sabia que o completava, que ele sem ela também não seria a mesma pessoa. Se fosse indiana, com muito orgulho pintaria a marca de posse na testa. Seria Rati, a esposa, e ele, o deus Kama. Reinventariam o Kama Sutra até que a morte os levasse.

Subitamente, recordou ter visto algures um piano a arder numa praia... Sim... lembrou-se de um pianista japonês qualquer que tocou num piano a arder...

-"Isso!"
Tal como uma princesa indiana, se ele morresse primeiro, arderiam juntamente, num piano como pira funerária, numa praia deserta, ao pôr do sol. Como deve ser!

Sorriu, abanou a cabeça, soltou aquilo que ela já sabia:

-"Devo estar doidinha! É do calor, só pode!"

- in As Longas Noites do Amanhã


 

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