Apenas mais um conto. De Natal.
José conheceu Maria numa daquelas noites em que o cepo ardia no largo da aldeia.
Aquilo era cá uma festa! Já era tradição antiga, uma daquelas que ninguém sabia dizer como começou... o cepo era incendiado na noite de Natal e duraria até aos Reis. E a malta reunia-se em volta, olhando para o verde Pinheiro que mesmo ali ao lado, testemunhava e fazia guarda de honra ao destino que certamente o esperaria daqui a umas décadas.
Mas não ainda. Ainda não era o tempo daquele jovem pinheiro arder. Teria ainda muitos invernos a suportar... sentir nos ramos o peso da neve, o rasgar da flor e o crescer das pinhas .
Ohh... tantas!
E tão lindas, naquele castanho que só a Natureza tem! Mas por mais que tentasse, por mais seiva que as alimentasse... elas caiam! E quando não caiam, os humanos vergastavam as suas pernadas e levavam os seus filhos para longe.... para arder bem longe.
O Pinheiro trocaria de bom grado o lugar nas chamas. Não há pai nem mãe que não o fizesse. Mas as raízes... As raízes agrilhoavam-no à mesma terra que o alimentava. A ele e a seus rebentos. Restava-lhe... assistir. E esperar.
José, cigarro no canto da boca, queimou-se enquanto puxava as brasas da fogueira e libertou um palavrão. Olhou para Maria e sentiu-se envergonhado. Maria desviou o olhar... regressou e sorriu.
Casaram-se em Julho, vieram os familiares que nunca tinham conhecido antes. Foi uma festa e pêras! Tinham mais família que julgavam existir!
4 cepos arderam até que o primeiro dos 3 rebentos assistisse ali, debaixo do verde pinheiro, à consoada no Largo. É, parecia que tinham sido abençoados com o dom da fertilidade. Talvez fosse da solidão da Suiça... talvez tinha sido apenas o destino... mas Maria sentiu que estava outra vez grávida quando olhou para aquele pinheiro imponente. "Gémeos". Não soube explicar, mas a ecografia posterior apenas confirmou.
O Pinheiro conseguia ver a montanha lá longe, cada vez com mais facilidade. Demasiada facilidade. Da sua geração restavam poucos... ali, com uma estrada e casas serpenteando entre eles. Sabia, sentia que não duraria muitos mais invernos. É... se nao fosse o parasita a dizimá-lo, um Humano qualquer sentiria frio e o desfaria em cavacas. Não era um destino que o desagradava totalmente. Deu por si a imaginar-se a arder numa lareira enquanto um bebé era amamentado. Talvez até parte de si fosse o berço que abrigaria aquele bebé. Sim... a vida é isto: dar o melhor de nós, fazer com que a valha a pena, deixar na terra o que recebemos e seguir em frente, com a esperança que os nossos... vivam.
Maria viu um dos seus filhos adoecer e morrer ainda novo. Mais tarde, os restantes ganharam asas e saíram de casa. Chegou a haver alturas que os via apenas na aldeia Natal, ali, em redor do cepo, sorrindo, rindo... e ralhando com os seus netos traquinas, que atiravam pinhas do velho pinheiro para a fogueira. Ela própria sentia cada vez mais frio, cansada, mais... sozinha. É, era nesta altura que sentia mais a falta do seu José.
"Porquê?! Porque é que a vida nos prega partidas quando esperamos ter ultrapassado os momentos mais difíceis?". Começou a questionar se valeria a pena celebrar as Festas. Sozinha não fazia sentido.
E ali estava ele... a amarelecer. O nemátodo-da-madeira já estava alojado bem debaixo da sua casca. Sentia-se secar, perder a vitalidade... e pior que isso, tinha escutado que este ano seria outro o pinheiro iluminado nas Festas.
Estava condenado.
Sinceramente, já nem se importava. Já tinha visto gerações crescer, subir a seus ramos para roubar-lhe os filhos.. e desaparecerem. Tinha sobrevivido a isso tudo, aos namoros, às tragédias... ao sem número de cepos queimados. Era a sua hora, seria agora que pela última vez, daria provas de sua existência.
Sentiu a caricia da lâmina e o fumo da motossera. Se tivesse mais seiva e verde nas folhas, talvez tivesse custado. Mas não... era o golpe de misericórdia esperado e ansiado. Pinheiro já não existia, apenas morria de pé.
Não! De todo!
Não gostaria de ser uma lembrança inútil e fantasmagórica, uma espécie de lápide apodrecida. Tinha que cumprir o seu destino, e se era acabar nas Festas, que fosse!
Rodou para a esquerda enquanto tombava. "Espera... aqueles pinheiros jovens... de onde vieram?!". Seu tronco tombou mesmo virado para eles. Eram seus filhos! Algumas de suas pinhas devem ter encontrado o lugar perfeito para germinar. Esteve tantos anos concentrado no Largo, vendo quem ardia, quantos Humanos apareciam, que nem se apercebeu que a vida continuava mesmo ali ao seu redor! Não tinha sido em vão.
Stéfan tinha escutado que lá no Portugal dos avós, lá na terra distante de tudo, havia uma tradição de queimar um cepo até aos Reis. E ali estava ele, cerveja na mão, ouvindo histórias da avó Maria e do avô José, encostado a um jovem e resinento pinheiro.
-"Mérde! Já estraguei mon casaco!". E riu para uma rapariga que talvez fosse do álcool ou da luz das chamas, lhe pareceu lindíssima.
Ela baixou o olhar... e sorriu de volta.
Dedicado para todos aqueles que nesta altura não estarão fisicamente na mesa. Por trabalho, doença, ou morte. Porque a vida continua.
Bom Natal para todos.
Aquilo era cá uma festa! Já era tradição antiga, uma daquelas que ninguém sabia dizer como começou... o cepo era incendiado na noite de Natal e duraria até aos Reis. E a malta reunia-se em volta, olhando para o verde Pinheiro que mesmo ali ao lado, testemunhava e fazia guarda de honra ao destino que certamente o esperaria daqui a umas décadas.
Mas não ainda. Ainda não era o tempo daquele jovem pinheiro arder. Teria ainda muitos invernos a suportar... sentir nos ramos o peso da neve, o rasgar da flor e o crescer das pinhas .
Ohh... tantas!
E tão lindas, naquele castanho que só a Natureza tem! Mas por mais que tentasse, por mais seiva que as alimentasse... elas caiam! E quando não caiam, os humanos vergastavam as suas pernadas e levavam os seus filhos para longe.... para arder bem longe.
O Pinheiro trocaria de bom grado o lugar nas chamas. Não há pai nem mãe que não o fizesse. Mas as raízes... As raízes agrilhoavam-no à mesma terra que o alimentava. A ele e a seus rebentos. Restava-lhe... assistir. E esperar.
José, cigarro no canto da boca, queimou-se enquanto puxava as brasas da fogueira e libertou um palavrão. Olhou para Maria e sentiu-se envergonhado. Maria desviou o olhar... regressou e sorriu.
Casaram-se em Julho, vieram os familiares que nunca tinham conhecido antes. Foi uma festa e pêras! Tinham mais família que julgavam existir!
4 cepos arderam até que o primeiro dos 3 rebentos assistisse ali, debaixo do verde pinheiro, à consoada no Largo. É, parecia que tinham sido abençoados com o dom da fertilidade. Talvez fosse da solidão da Suiça... talvez tinha sido apenas o destino... mas Maria sentiu que estava outra vez grávida quando olhou para aquele pinheiro imponente. "Gémeos". Não soube explicar, mas a ecografia posterior apenas confirmou.
O Pinheiro conseguia ver a montanha lá longe, cada vez com mais facilidade. Demasiada facilidade. Da sua geração restavam poucos... ali, com uma estrada e casas serpenteando entre eles. Sabia, sentia que não duraria muitos mais invernos. É... se nao fosse o parasita a dizimá-lo, um Humano qualquer sentiria frio e o desfaria em cavacas. Não era um destino que o desagradava totalmente. Deu por si a imaginar-se a arder numa lareira enquanto um bebé era amamentado. Talvez até parte de si fosse o berço que abrigaria aquele bebé. Sim... a vida é isto: dar o melhor de nós, fazer com que a valha a pena, deixar na terra o que recebemos e seguir em frente, com a esperança que os nossos... vivam.
Maria viu um dos seus filhos adoecer e morrer ainda novo. Mais tarde, os restantes ganharam asas e saíram de casa. Chegou a haver alturas que os via apenas na aldeia Natal, ali, em redor do cepo, sorrindo, rindo... e ralhando com os seus netos traquinas, que atiravam pinhas do velho pinheiro para a fogueira. Ela própria sentia cada vez mais frio, cansada, mais... sozinha. É, era nesta altura que sentia mais a falta do seu José.
"Porquê?! Porque é que a vida nos prega partidas quando esperamos ter ultrapassado os momentos mais difíceis?". Começou a questionar se valeria a pena celebrar as Festas. Sozinha não fazia sentido.
E ali estava ele... a amarelecer. O nemátodo-da-madeira já estava alojado bem debaixo da sua casca. Sentia-se secar, perder a vitalidade... e pior que isso, tinha escutado que este ano seria outro o pinheiro iluminado nas Festas.
Estava condenado.
Sinceramente, já nem se importava. Já tinha visto gerações crescer, subir a seus ramos para roubar-lhe os filhos.. e desaparecerem. Tinha sobrevivido a isso tudo, aos namoros, às tragédias... ao sem número de cepos queimados. Era a sua hora, seria agora que pela última vez, daria provas de sua existência.
Sentiu a caricia da lâmina e o fumo da motossera. Se tivesse mais seiva e verde nas folhas, talvez tivesse custado. Mas não... era o golpe de misericórdia esperado e ansiado. Pinheiro já não existia, apenas morria de pé.
Não! De todo!
Não gostaria de ser uma lembrança inútil e fantasmagórica, uma espécie de lápide apodrecida. Tinha que cumprir o seu destino, e se era acabar nas Festas, que fosse!
Rodou para a esquerda enquanto tombava. "Espera... aqueles pinheiros jovens... de onde vieram?!". Seu tronco tombou mesmo virado para eles. Eram seus filhos! Algumas de suas pinhas devem ter encontrado o lugar perfeito para germinar. Esteve tantos anos concentrado no Largo, vendo quem ardia, quantos Humanos apareciam, que nem se apercebeu que a vida continuava mesmo ali ao seu redor! Não tinha sido em vão.
Stéfan tinha escutado que lá no Portugal dos avós, lá na terra distante de tudo, havia uma tradição de queimar um cepo até aos Reis. E ali estava ele, cerveja na mão, ouvindo histórias da avó Maria e do avô José, encostado a um jovem e resinento pinheiro.
-"Mérde! Já estraguei mon casaco!". E riu para uma rapariga que talvez fosse do álcool ou da luz das chamas, lhe pareceu lindíssima.
Ela baixou o olhar... e sorriu de volta.
Dedicado para todos aqueles que nesta altura não estarão fisicamente na mesa. Por trabalho, doença, ou morte. Porque a vida continua.
Bom Natal para todos.
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