Reis, cavalos e outros peões.




Curiosamente, uma das primeiras memórias que tenho sobre os jogos de mesa, é o Xadrez.

Sincera e injustamente, não me recordo com quem aprendi... sei que era catraio da primária, e na minha classe só o Alexandre é que sabias as regras, mas tal como eu, a estratégia era proporcionalmente directa à nossa inocência: resumia-se a movimentar as peças e logo se via.

Xadrez não é apenas um jogo asiático de guerra... é a perfeita amostra de uma sociedade estruturada. Pode-se mudar os nomes às peças, que na sua essência, na sua personalidade, tudo ficará igual. Porque há coisas que não mudam, por mais cosmética social que se coloque em cima.


Há sempre uma maioria basilar de "desgraçados" facilmente descartáveis pelas elites, que fazem tudo e de tudo para sobreviver mais um dia, no menor espaço e liberdade de movimentos em todo o tabuleiro. Chame-se Peão, operário ou mero contribuinte anónimo, que no final do jogo não levará nem louros nem a rainha adversária consigo. Mesmo que tenha deposto o Rei.

Dos peões não reza a história.

Do jogo, presuma-se.


Contemplai a brava Torre!
Rígida, forte, com seu espartano raio de acção, sempre em frente ou lateralmente, nunca tomando atalhos ou desvios, condicionada à exigência do momento. Apenas obedece, mera força de segurança, facilmente manipulável e aquela que em caso de ameaça extrema e em condições muito únicas, cederá a sua vida em prol da Elite dominante -chame-se-lhe Rei, se preferirem- num movimento especial de sacrifício chamado Roque.

Mais uma peça descartável.

Para bem da nação. Do Xadrez, entenda-se.


Sociedade sem o seu pastor, Xamã ou Druida, não é sociedade que se preze.

O Bispo, essa figura redonda, peça pontiaguda, afeminada nas curvas, move-se na diagonal, percorrendo todos os estratos sociais -perdão, tabuleiro- sem limite na distância e fácil recuo nas suas posições. Protege o Rei, a Rainha, e sobretudo, a si mesma.


Depois temos aqueles que passam facilmente por cima de todos, distanciando-se ligeiramente da posição actual para seguir ou recuar sem oposição. Sem obstáculos ou problemas de consciência. Cavalo é o seu nome. Não consta que seja eleito ou nomeado no Xadrez, mas de nobre, só no tabuleiro.


Eis que chegamos àquela peça que todos desejamos ser, mas na sua impossibilidade, matar ou humilhar. 


Peão em Complexo de Édipo, dir-me-ão... mas é mesmo assim.

Longa vida para o Rei, que carrega a cruz da coroa e da decisão de quem vive ou morre!


É triste e curta a vida da peça supostamente a mais poderosa no tabuleiro.

Mexe-se apenas uma casa a cada vez.

Sim, tem acesso a todas elas... até é a peça mais protegida... mas está condicionada pelo seu peso, pela corte que o rodeia e pelas ágeis e furtivas movimentações de todas as outras peças na sua linha, que o confinam ao seu leito real. É a peça mais solitária. Todas as outras são espelhadas e duplicadas. E já nem se refere a carne para canhão que estão -sempre- na linha da frente.

Sim, eu sei... a Rainha também é única... já lá vamos...


O Rei ficará com a glória da Vitória -mesmo que não tenha desembainhado a espada- ou escolherá entre a humilhante rendição pela ausência de fuga possível, e... deixar rolar a sua cabeça. Eventualmente com a Rainha e outras peças sobreviventes a assistir.

Xeque-ao-Rei, Xeque-Mate, game over.


Pois, tinha prometido, vamos a isso!

A Rainha, essa peça imponente e poderosa, que se movimenta em todas as direcções e sentidos, vestindo a pele de todas as restantes peças... exceptuando duas... o simbolismo da vida do Rei, e o direito de saltar por cima, característica do nobre Cavalo. Talvez esta impossibilidade esteja relacionada com o facto de porventura, para atingir seus objectivos, ficar por baixo... mas isto são apenas especulações, nada de provado.


A Rainha é a mulher forte que está por trás de um grande... Rei.

É a Rainha quem efectivamente dispõe do poder, quem manipula e lê os primeiros sinais, a que protegerá seu Rei até ao fim.

Ou não.

A Rainha é toda a sensibilidade e jeito feminino de lidar com os problemas... adaptável, silenciosamente e nas sombras, mas letal. Qualquer Rei que se preze não colocará a sua rainha em risco e tentará preservá-la o mais possível. Deixará cair o conspirador Cavalo, o ameaçador Bispo e até o rochedo seguro da Torre...


Mas o tabuleiro exige mais... 


Exige que o Rei governe e sobreviva.

Até a Rainha, essa princesa filha de outro Rei em oferta de paz no principio das peças... poderá ser sacrificada.


Valerá a pena?
Talvez...


Mas tabuleiro sem Rainha...


Não é a mesma coisa.



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