Amputações e outras dores fantasmas
É... desde o tornado que entrou pela janela do Sótão, que isto nunca mais foi o mesmo.
Móveis arrastados, quadros no chão, louça partida... aqueles frascos que tinhamos naquela prateleira,os que tinham as memórias e vivências dos amigos, rodopiaram no vórtice, cairam ao chão e misturam-se em cacos.
O pior é que desconfio que muita coisa se perdeu no processo, entre as frestas do soalho, ou rolando de livre vontade, até às escadas. Não que eu as tivesse varrido, mas certas memórias são assim... voláteis, de memória curta.
O que sobra, entre vidros, pedaços de porcelana -não daquela fria, industrial, em série e anónima... não! Torneada à mão, com o carinho e amor do artista, dedicada e personalizada- que me custou as lágrimas do rosto e 30 dinheiros de sentimento... é agora uma mistura disforme e confusa. Irremediavelmente confusa. Tenho a certeza que algumas coisas se perderam... outras com a pancada, mudaram de forma ou lugar... o restante... o que resta, ainda não sei bem em que frasco o colocar. Faltam-os rótulos fáceis, daqueles que é só tirar e colar...
Naaaa... até o lixo pode e deve ser reciclado. Podes não saber bem se aquela película com aspecto metálico dentro das embalagens de bebidas muda a natureza do todo... Era tão simples antes! Olhavas para o volume, caixa daquele papel quente, reciclagem de papel! Pimba! Já está! Mas não... tinha que se rasgar e mostrar o seu núcleo de plástico metálico, frio... Agora teu cérebro racional baralha-se... És o que mostras? Ou o que levas dentro? Será que esta mistura te muda a percepção que tens das coisas?
E agora?
Papel? Metal? Plástico? Não queres fazer asneira. Queres sentir que tomaste a opção certa. Apelas aos sentidos e à racionalidade.
e ficas na mesma. Com a decisão por tomar.
Mas não pode ser. Em tudo na vida tem que existir uma ordem, uma arrumação, um lugar. Mesmo que esteja fora do lugar próprio. E escolhes. Aproveitas o que se puder. Como puder ser aproveitado. Ao lixo o que é do lixo!
Sim... vais ficar com coisas que não prestam, e certamente algo com valor (nem que seja para alguém alheio) irá ser desperdiçado... Mas tu tens que tomar uma decisão, não podes ficar com o entulho no meio do soalho. Não, varrer para baixo do tapete, não resolve... só acumula. Algo tem que ser feito. E não te podes lamentar de o fazer. Não foste tu quem causou a tempestade, mas serás tu quem terá que arcar com as consequências.
Se tens que o fazer, fechas os olhos, e fazes. Ponto final.
E no final, quando te sentares, aprecias o resultado. Sim, ficou diferente. Limpo, mas diferente.Já não é o mesmo Sótão que tinhas antes. Não... falta aquele quadro... aquela peça que te deram naquele momento especial. Mudas a disposiçãoo do que sobra... tentas tapar espacos novos, abrir novos ângulos e perspectivas...
Mas falta algo.
Falta algo que tu sentes muito presente, mas que nunca mais estará la. Como se fosse um membro amputado, naquela dor fantasma que dizem que as pessoas têm, mesmo não havendo mais osso ou pele para quebrar, sentir, ou acariciar.
Mordes os labios, olhas para o que sobrou, e sorris. Constróis teu castelo com o que sobra. Valorizas cada pedaço de lego emocional que te une e te mantém sólido. E reparas que tens tanto, mas tanto ainda, que no espaço agora vazio, vês oportunidades para quadros novos, daqueles que nunca viste, sentiste ou ouviste!
Naquela frase muito tuga, dizes a ti mesmo: "podia ser pior!"
E podia mesmo!
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