A marcha silenciosa
Toda esta polémica acerca de emails, toupeiras e segredo de justiça, seria apenas um pormenor se não fosse sintomática do apodrecimento dos valores sociais.
Não vou vestir as puras vestes brancas e virginais, nem sequer descobrir pólvoras que todos usam...
Não.
Sempre existiu o favorzinho, o pedido, a troca de favores em benefícios comuns, a cunha... não fossemos nós, mais que animal social, um animal político. Usamos o que de melhor temos para usufruto próprio e do nosso grupo. Chame-se família, amigos, clube, partido, empresa. A ordem é irrelevante e é apenas um questão proporcional entre a mera relação de amizade/cordialidade e a pura sobrevivência.
O problema está na definição da fronteira entre o aceitável -diria até expectável- e a anarquia, onde tudo é possível e o mais forte regula a estrutura a seu bel-prazer. Uma espécie de lei da selva que nos transforma no pior dos animais: aquele que humilha, destrói e mata, só porque... pode.
A banalidade destes comportamentos e decisões supostamente censuráveis, inunda os media de tal forma, que perdemos a capacidade de enojamento. Pura e simplesmente deixamos de nos importar, não nos toca e se nos tocar, sabemos à prióri, que ninguém fará nada por nós. Então como sobreviver neste meio? Adaptamo-nos e fazemos o mesmo. Pisamos no desgraçado que está mesmo ali ao alcance da nossa passada e seguimos em frente. Ou melhor, nadamos. Com um bocadito de sorte, alguém servirá de apoio para conseguirmos tirar o nariz do cheiro nauseabundo onde chafurdamos. Porque não somos diferentes, estamos apenas um pouco mais acima daqueles que tal como nós, são pisados por quem é maior, nem que seja apenas para eternizar o seu estatuto superior.
A História trata de nos lembrar que tudo isto é um fenómeno cíclico; que só depois de cairmos no abismo é que reparamos que ninguém nos empurrou... que apesar dos avisos e sinais, apenas demos o passo que faltava. A mesma História também nos consola com o aparecimento de pessoas que em momentos e lugares fulcrais, tiveram a coragem e o discernimento de dizer basta, quando seria mais fácil aproveitar o caos para cimentar posições superiores. Para si e para os seus. Não que fossem exemplos de virtude ou possuíssem estatutos de santidade (o que quer que isso signifique...), apenas acharam que não era correcto, não era... humano, pactuar com tais comportamentos. E agiram.
Talvez ainda tenhamos gente lúcida nos reguladores sociais e económicos. Talvez ainda exista gente com força (e poder) suficiente para frenar esta desregulação ética e económica que grassa nas sociedades ditas civilizadas. Talvez ainda tu e eu consigamos criticar governantes e decisores/reguladores pela sua passividade... ou o presidente dos nossos clubes pelo seu comportamento. Mesmo que isso custe a cunha que pediste, o empregozinho, o fechar de olhos para as obras que fizeste... ou a vitória no campeonato.
Quero acreditar que ainda existe muita gente assim.
Só falta dizer basta!
“Aquele que combate os monstros deve ter cuidado para ele próprio não se transformar também num monstro. Se olhas longamente para um abismo, o abismo também olha para ti.”
- Friedrich Nietzsche
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