Mar vestido de solidão


"Depois da estátua no paredão, é a segunda casa à esquerda".
Melita, a modista, tem a amabilidade e simpatia genuina desenhada no rosto marcado pelo tempo. Figura frágil, olhos verdes de esperança perdida, escondidos atrás dos óculos que não lhe permitem ver quem mais deseja. 
Nunca mais... 



Melita vive sozinha, presa pela idade da reforma e colada às paredes forradas de lembranças.

Casa à beira-mar, naufragada entre fotos e memórias. Os turistas fazem-lhe companhia durante os meses de verão.
Descobri que Melita não aluga o estúdio anexo da sua casa... não... Melita, a modista, recebe gente para conversar e cede seu espaço em troca de alguns euros, a pessoas que a ouçam e aliviem sua solidão. Durante 4 meses seu quintal, o terraço, a rua, enchem-se do cheiro a grelhados, crianças que brincam, noites em que não se ouve apenas o mar... e casais.

Melita, a modista, ficou amputada vai para 6 meses. Ano e meio depois do seu mais-que-tudo ter deixado aquela maldita fábrica que o tirava da cama ao meio da noite de inverno, quando a tempestade estava forte e o mar solto ameaçava galgar o paredão, fazendo-a sentir pequenina, sem o abrigo do marido. Sim, ele não tinha grande escolha... aldeia piscatória... era o mar que roubava vidas, ou a fábrica... aquela onde ele fazia o papel com que muitos embrulhavam as prendas, ou postais e cartas que enviava para o filho na Austrália ou para a filha na capital...

Melita era modista afamada nos seus tempos áureos. Requisitada por gente de bem e casas de uniformes e arranjos. Melita não tinha mãos a medir. Fazia horas atrás de horas para dar despacho às marés de encomendas. Talvez assim conseguisse mais cedo acabar aquele anexo para alugar aos turistas... talvez assim conseguisse ajudar a filha divorciada a pagar a universidade da neta... talvez assim conseguissem ir ver a Austrália e os netinhos que não conheciam...
E trabalhava. Dia após dia, sem descanso ou turnos. O marido dizia-lhe que o mar de tecidos lha tinha roubado. Vida de trapos e entre trapos, pedaços rasgados, cada vez mais pequenos de tempos vividos e convividos a dois, sem aquela azáfama do dever.

Estava quase. O estúdio já engordava as economias, agora com a "ajuda para as despesas" das reformas... agora Melita, a modista, ia vestir e vestir-se do marido... à beira-mar, partilhando aquele mar imenso mesmo em frente, com o som das ondas como embalo... mesmo ali tão perto... e esperar calmamente pelo pôr-do-sol.

Tantos anos encostados um ao outro sem conseguirem enroscar-se. Vidas em função do trabalho... para que agora não tivessem trabalhos para pensar ou fazer. Apenas ser... um casal.

Foi com lágrimas a bailar no olhar que Melita nos disse para aproveitarmos enquanto somos novos. Porque o dinheiro traz e leva... mas nâo substitui... não acrescenta.

"Um dia ele sentiu-se mal e o médico mandou fazer exames".

6 meses. S-E-I-S míseros meses foi quanto durou o paraíso de Melita, a modista. Mostrou-nos a casa cheia de vazio e saudade. As fotos do marido, dos filhos e netos... e uma amabilidade extrema para que não nos faltasse nada... como tentasse expiar connosco, a falta de atenção que dizia não ter dado ao marido quando podia e devia. Tentei passar algum conforto... mas nestas alturas, ou dizemos o banal, ou mais vale deixar o silêncio falar por nós... "Dona Melita, faça uns vestidos, uns arranjos, assim sempre vai passando o tempo..."

A resposta veio brutal... "Foram os vestidos que me afastaram dele. Desde que morreu nunca mais quis fazer nada para ninguém".

E continuámos, vendo a casa, assentando arraiais e amarras naquele porto temporário.

Irónicamente, ou talvez não, só no último dia conseguimos ver o pôr-do-sol. Mar calmo, vendo o sol desfazer-se em tons de laranja, até o azul ir ficando mais carregado, misturado com o mar. E senti-me pequenino naquela grandiosidade. Mas feliz por não estar sózinho.

Melita, despediu-se de nós com o mar nos olhos. Nós de regresso a casa, refeitos e revigorados.

Melita, a modista, voltou para o seu abrigo solitário... alheia ao mar, à espera que o sol se ponha.
E lhe afogue as saudades.



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